quarta-feira, 21 de junho de 2023

O CONTEXTO CULTURAL E DOENÇAS

 

O CONTEXTO CULTURAL E DOENÇAS


“As questões ligadas à saúde, especialmente, a doença e a cura, compreendidas enquanto resultantes de fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e culturais, são explicadas diferentemente pelos paradigmas das Ciências Biomédicas e das Ciências Sociais”. 


César Augusto Trinta Weber. MD. MSc. PhD. Pós-Doutor. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Universidade de São Paulo. SP. Brasil (1)


Conhecer o contexto cultural do Brasil, é entender o seu passado, o presente e saber o que pode acontecer com o seu futuro. Acontecimentos se repetem: salutares e inconvenientes. A corrupção, as incompatibilidades sociais, a decadência moral, a miscigenação, o sincretismo religioso, agressividade, as doenças físicas e mentais, são marcas históricas e genéticas do povo brasileiro. Podemos lembrar o “homem-caranguejo”, do intelectual médico e sociólogo pernambucano Josué de Castro, o “homem bicho do lixo”, de outro pernambucano, o ínclito poeta e professor de literatura Manuel Bandeira e o “homem-gabiru”, como ficou conhecido o trabalhador rural nordestino na década de 90, com 1m35 de altura, transformou-se num símbolo da miséria do Nordeste, vítima do nanismo provocado pela desnutrição. Nesta configuração, o célebre mestre Dr. Álvaro Rubim de Pinho conhecia muito bem! 


Álvaro Rubim de Pinho nasceu em Manaus no dia 22/02/1922 e faleceu em Salvador no dia 09/11/1996. Formou-se médico pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1945, especializando-se em psiquiatria em Salvador e São Paulo. Defendeu as teses: “Diagnóstico da psicose maníaco-depressiva”, em 1955 e “As funções cognitivas dos epilépticos”, em 1965. Por muitas décadas, foi o professor titular de psiquiatria da Universidade Federal da Bahia, formando e influenciando gerações de psiquiatras. Foi presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Academia de Medicina da Bahia. 


Alguns de seus trabalhos sobre psiquiatria cultural e antropologia das doenças mentais foram: “Aspectos socioculturais das depressões na Bahia, 1968” e “Tratamentos religiosos das doenças mentais em um bairro pobre de Salvador, 1976”. 


O renomado mestre e insigne médico Dr. Álvaro Rubim de Pinho discorre com elegância e sagacidade sobre as entidades nosológicas intrigantes tais como a caruara, o tangolomango, o banzo, o calundu e o mau-olhado. Relembraremos o mestre amazonense/baiano, aprendendo sobre as manifestações do adoecimento mental em nosso meio cultural. 


Sua atenção como mestre e psiquiatra revelam um clínico sensível e um pesquisador não-dogmático. Acreditava que o avanço da psiquiatria se daria principalmente pelas investigações epidemiológicas e bioquímicas. Entretanto, ao lado dessa fé nas ciências empíricas e naturais, salientava que o psiquiatra brasileiro deveria, para viabilizar e enriquecer sua prática clínica, conhecer profundamente a realidade social e cultural de seus pacientes. 


Caruara 


O conceito nosológico que foi bastante importante, a Caruara. Esta entidade caminhou na segunda metade do século passado do Maranhão até a Bahia, instalando-se sobretudo na cidade do Salvador e, mais particularmente, no Bairro de Itapajipe. As pessoas ficavam incapazes de se pôr em pé e de andar. A Caruara funcionava sob diferentes formas clínicas e era necessário ao médico, até o começo deste século na Bahia, fazer o diagnóstico diferencial entre Beribéri e Caruara sempre que as pessoas tinham incapacidade de movimentar os membros inferiores. 


Tangolomango 


Em diferentes momentos históricos, tem havido certos quadros mentais que, seguramente, tiveram uma fisionomia bem própria e que têm sido específicos da nossa cultura. Vale a referência a que, ainda que em tempo colonial, os viajantes europeus aqui encontraram epidemias da chamada Malinconia, estados de tristeza epidêmicos que os padres Jesuítas tratavam à custa de métodos de persuasão. Os portugueses, provavelmente tendo recebido da Guiné este conceito, para cá trouxeram uma outra forma, uma outra vertente, uma outra feição disso – o Tangolomango. A noção do Tangolomango corresponde tradicionalmente aquela de um mal súbito que conduziria ao definhamento. É possível que nisso existissem fatores de ordem biológica, doenças somáticas agudas, mas também é possível que nisso estivessem estados de anormalidade mental aguda, sobretudo estados depressivos. 


Banzo 


O Banzo teve, sem dúvida, uma presença nacional. Aprendemos com os historiadores que os negros importados da África traziam consigo, muitas vezes, a vocação para a tristeza. A partir da viagem até a chegada às nossas costas, apresentavam estados de definhamento, ficavam parados, e a própria expressão Banzo, suposta de procedência angolana, reflete seguramente uma nostalgia, uma saudade da terra. Diferentes estudiosos atribuíram interpretações diferentes às causas do Banzo. Entre eles, Satamínio Duarte, que pensava tratar-se de psicoses esquizofrênicas de tipo catatônico e Pirajá da Silva, que acreditava que fossem casos de doença do sono. 


Calundu e mau-olhado 


Outro conceito que não se pode dizer que corresponda a uma psicose, mas que seguramente corresponde a um fenômeno do âmbito psiquiátrico é o chamado Calundu. Os brasileiros do Norte e particularmente da Bahia se habituaram desde pequenos a ouvir em Calundu como correspondente a uma distimia irritável. Há determinadas pessoas que, em certos dias, diz assim, "já acordam com os seus calundus" – já acordam zangadas, sensíveis quanto a tudo que lhes acontece e, nestes dias, são evidentemente capazes de reações incomparavelmente mais agressivas do que o que acontece na média do seu humor normal. 


Calundu foi também palavra usada com uma intenção de referir certos festins de pretos africanos, mas o Calundu no sentido de disforia, no sentido de distimia irritável, teve, diferentemente do Banzo, interpretação religiosa. Parece que, em nenhum momento, foi atribuída ao Banzo uma causa relacionada com castigos ou com influências de Orixás ou de diabos. Ao invés disto, o Calundu foi visto como um estado de possessão. Diferente dos outros estados de possessão, porque nos outros, como acontece habitualmente no Estado de Santo, há uma modificação imediata, uma modificação transitória da consciência quanto à identidade pessoal, enquanto que a pessoa com Calundu não sabe que está sendo possuída por essa divindade que a faz assim irritadiça. Outro exemplo é o conceito do mau-olhado, provavelmente uma versão nacional correspondente àquilo que foi na Europa o chamado Magnetismo Animal, a possibilidade de influências magnéticas dos olhos de determinadas pessoas conduzindo ao comprometimento da saúde física e mental de outras pessoas. (2). 


Há certa controvérsia sobre o Banzo. Nos relatos do naturalista alemão Carl von Martius, de 1844, este pesquisador descreve o Banzo tanto em negros escravos como em populações indígenas brasileiras nativas, mostrando que o Banzo não se restringia a negros recém-chegados de viagem nos navios negreiros. Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) foi um médico, botânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisadores alemães que estudaram o Brasil, especialmente a região da Amazônia (3). 


Conclusão 


Em tempo de pandemia, o medo, a ignorância, o contexto cultural de crendice, superstições, o fenômeno de possessões, as incertezas quanto a proteção das divindades, a pobreza, tudo isso leva a um quadro clínico de perturbações mentais, ansiedade exacerbada, depressão, solidão, suicídio, separação matrimonial, relacionamentos desfeitos, perda de emprego e crescimento da violência. 


Um povo sem conhecimento, sem proteção do Estado, encurralado por notícias falsas e catastróficas, diante de si uma nefasta desigualdade social, uma liderança despreparada, líderes corruptos e uma elite capitalista super articulada que diante do pandemônio da pandemia lucra colossalmente! 


Por milênio a ideologia de boçalizar e estupidalizar a massa humana funciona via uma cultura política alienante e psiquiatricamente dolosa. Assim diz a sentença latina: “ad captandum vulgus”, quer dizer: “para captar o vulgo; para seduzir as multidões”. Seduzir pelo engano, pelas falsas promessas e pelo consumismo como prisão e forca dos endividados. 


Para o homem justo e trabalhador, sua honestidade é testada e desafiada é a sua dignidade no confronto com a sociedade hipócrita, corrupta, agressiva e tremendamente ardilosa. Não são poucas as cruéis armadilhas arquitetadas numa sociedade doentia de narcisismo, hedonismo e idólatra pelo dinheiro. 


O contexto cultural numa simbiose falaciosa na medicina, no sistema religioso, na política, na economia e no meio acadêmico, torna-se muito difícil compreender, acolher e tratar o povo doente e sofrido. É coerente viver na pós-modernidade com abissal intelectualidade, espiritualidade para melhor entender, respeitar e trabalhar proporcionando ao povo qualidade de vida, ou seja, saúde física, psicológica e mental. E em tudo, a cultura da vida! 


Dr. Agricio Inácio José do Vale, Psicanalista Clínico 

Sociólogo em Ciência da Religião 

Qualificado em Psicologia Clínica e Educacional 

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Contemporânea/RJ. 

Autor do livro Terapia Psicanalítica: Demolindo a Ansiedade, a Depressão e a Posse da Saúde Física e Psicológica 

Fontes: 

(1) https://www.polbr.med.br/2019/05/02/doenca-mental-e-antropologia-mental-illness-and-anthropology/ 

(2) Transcrição e adaptação para texto escrito, introdução e notas por: Paulo Dalgalarrondo; Silvia Maria Azevedo dos Santos; Ana Maria Raimundo Oda. Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp. Campinas. SP. Brasil - https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462003000100015

(3) https://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Friedrich_Philipp_von_Martius 

MARTIUS, K. F. V. apud RODRIGUES, José Honório. Como se deve escrever a História do Brasil. In: Revista de História de América, n. 42 (dez., 156).

Nenhum comentário:

Postar um comentário